
“Os números contam uma história”: a contadora Aline Sales e os MEIs nas periferias
Conheça a trajetória de Aline Sales e os desafios enfrentados pelos empreendedores periféricos, como desinformação, burocracia e dificuldades no pagamento de impostos
Por Amanda Stabile
30|05|2025
Alterado em 30|05|2025
Aline Sales é filha de pais maranhenses que migraram para São Paulo em busca de uma vida melhor. Aos seis anos, perdeu a mãe e foi criada pela tia até os 10. Foi justamente a companheira da tia, que trabalhava como contadora, quem despertou nela o sonho de seguir essa profissão. “Eu pequenininha ia para o escritório com ela e dessa admiração me veio a vontade de ser contadora”, conta com os olhos brilhando.
Depois da separação do casal, Aline foi morar com o pai, mas precisou sair de casa aos 14 anos por causa de situações de abuso. Começou a trabalhar cedo, cuidando de crianças, passando roupas, fazendo recepção e limpeza em consultórios, mas nunca abandonou os estudos.
Aos 18 anos, reencontrou a companheira da tia, que lhe ofereceu uma vaga no escritório de contabilidade. “Lembro que meu primeiro registro foi com um salário de R$400 para trabalhar 44 horas semanais”, recorda.
Fazendo curso técnico e faculdade de contabilidade, ela descobriu um encanto na área. Ouviu uma frase que ficou gravada na memória: “Os números contam uma história, eles conversam com você”. Ao lançar documentos e recibos, conseguia “ver” a trajetória da empresa refletida nos balanços.
“Mas muitas vezes, eu tentava passar para o cliente ou até mesmo para o meu superior na empresa a mensagem que identificava no balancete, mas eu não tinha voz”, lembra. “Eu percebi que, para falar essa linguagem, para passar essas mensagens com fluência e ser ouvida no mercado, o Exame de Suficiência do Conselho Federal de Contabilidade seria a minha principal arma e o meu primeiro grande desafio”.
O Exame de Suficiência do Conselho Federal de Contabilidade é uma prova obrigatória no Brasil para quem deseja atuar como contadora de forma profissional. Serve para comprovar que a pessoa tem os conhecimentos técnicos necessários para exercer a profissão e está apta a se registrar no Conselho Regional de Contabilidade (CRC) do seu estado.
Hoje, Aline tem muitos clientes da periferia e sente orgulho de ajudar quem, como ela, vem de onde as oportunidades são poucas. “Tenho um compromisso com a humanização dos serviços contábeis. Cada cliente é ouvido e atendido conforme suas necessidades. Cobro valores acessíveis porque quero ajudar os empreendedores da periferia a crescer, não só obter lucro”.
Ela atende pessoas da sua quebrada no Grajaú, na Zona Sul de São Paulo (SP), além de coletivos locais. “Sou da periferia e sei como é importante ter um norte. Agora que tenho conhecimento, quero colaborar para o crescimento de outras empreendedoras e empreendedores”.
Microempreendedores Individuais (MEIs) nas periferias
Para muitos empreendedores periféricos, como os clientes que Aline atende, formalizar o próprio negócio é um desafio cheio de dúvidas e dificuldades. O Microempreendedor Individual (MEI) é um modelo de empresa criado em 2008, por meio da Lei Complementar nº 128/2008, para facilitar essa formalização, dando uma oportunidade para trabalhadores autônomos saírem da informalidade e terem acesso a direitos e benefícios, como CNPJ, impostos reduzidos e aposentadoria.
No Brasil, em 2022, mais de 14 milhões de pessoas já eram MEIs, uma das maiores iniciativas de inclusão econômica do mundo. Mas, mesmo com todos os benefícios, o MEI não é uma solução mágica. Muitos empreendedores enfrentam dificuldades para manter a formalização, lidar com as obrigações legais.
Segundo Marcella Carvalho de Araujo Silva no artigo “Notas etnográficas sobre o empreendedorismo em favelas cariocas”, a formalização por meio do MEI muitas vezes se apresenta como uma ferramenta promissora, mas também revela tensões entre as promessas da política pública e a realidade vivida pelos trabalhadores autônomos.
Nas favelas pacificadas do Rio de Janeiro, por exemplo, onde o MEI foi amplamente promovido como parte de programas de inclusão produtiva, muitos moradores relataram que a formalização era vista mais como uma obrigação burocrática para emitir notas fiscais ou acessar crédito do que como uma oportunidade real de crescimento.
Mesmo com os benefícios, parte dos empreendedores enfrentou dificuldades em arcar com os custos e em lidar com as obrigações legais, levando muitos a abandonar o registro e retornar à informalidade. Além disso, o artigo destaca que o empreendedorismo em contextos periféricos frequentemente não é uma escolha estratégica, mas uma resposta a crises econômicas e sociais.
Uma pesquisa realizada pelo Sebrae comprova que para muitos a formalização pelo MEI é motivada pela necessidade de sobrevivência. Dentre os dados do estudo, estão:
76% têm na atividade como MEI a sua única fonte de renda, ou seja, cerca de 4,6 milhões de pessoas dependem exclusivamente do MEI;
28% dos MEIs sustentam exclusivamente toda a sua família, o que representa cerca de 1,7 milhão de famílias e 5,4 milhões de pessoas;
33% dos MEIs estavam na informalidade antes da formalização, ou seja, cerca de 2 milhões de pessoas foram retiradas da informalidade pelo MEI;
Praticamente metade desses empreendedores (48%) atuou sem CNPJ por “10 ou mais anos”;
Mais de 2 em cada 5 entrevistados (40%) têm a própria residência como o respectivo local de trabalho;
A “necessidade de uma fonte de renda” em 2019 (33%), a exemplo de 2017 (33%), também se destaca fortemente de todas as demais justificativas para empreender;
61% buscaram a formalização pelos benefícios do registro, como emissão de nota fiscal e acesso a melhores condições de compra.
Aline conhece essa realidade da periferia na pele e alerta: “as pessoas precisam entender que não podem emprestar seu CPF para mãe, o pai, o tio ou o cunhado abrir um MEI em seu nome, porque existe uma responsabilidade para com o Governo com a abertura de um CNPJ”.
Para ela, a formalização tem potencial para mudar vidas, desde que acompanhada de orientação e foco no crescimento real. “Com o MEI, é possível participar de editais, comprar mercadorias em maior quantidade e conseguir financiamento.”
A contadora aponta que o caminho para o sucesso do negócio passa pela informação correta e pelo acompanhamento prático, como abrir conta jurídica, pagar o DAS em dia e fazer a declaração do Imposto de Renda corretamente. Ela também comenta que um dos maiores obstáculos para os MEIs é a desinformação, especialmente em relação à declaração de Imposto de Renda.
O DAS (Documento de Arrecadação do Simples Nacional) é o boleto que o Microempreendedor Individual (MEI) precisa pagar mensalmente para se manter regularizado junto ao governo. Ele é um tributo simplificado que unifica os impostos obrigatórios para quem é MEI. O valor do boleto é diferente conforme a atividade do negócio, mas em 2025 varia entre R$76,90 e R$188,16.
“Tem muita fake news. As pessoas não sabem o que significa e como efetuar a entrega da declaração. E tem muita gente que acredita que não precisa declarar porque não quer pagar imposto ou não quer ser hackeado pelo governo. E acabam pagando por isso”, conta. Aline atende muita gente que só a procura quando o CPF já está bloqueado e com multa, situação que poderia ser evitada se a declaração fosse feita no prazo. “Muita gente perde dinheiro e ainda se complica”.
Por isso, a contadora defende que o governo precisa investir mais em campanhas educativas específicas para MEIs. “As pessoas sabem que existe o MEI, mas não entendem direito o objetivo real da formalização, nem como usar esse instrumento para crescer”, alerta.